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Ocarina of Time e a invenção do zero 
Por Marcellus Vinícius Publicado em 2 de abril de 2021
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Já tentou imaginar como seria o mundo sem a existência do número zero? Consegue?

Tal pergunta passou pela minha cabeça há alguns anos, enquanto bebia com amigos em um bar no centro de São Paulo. Dois dos integrantes da mesa começaram a discorrer sobre a importância do estudo da matemática e impacto da evolução histórica dela na nossa cultura. Na hora, em uma epifania possivelmente instigada pela combinação entre cerveja e Steinhaeger, um deles cunhou a expressão “obviedade posterior” (até joguei isso no Google depois e não achei nada) para descrever o pouco valor que damos a conceitos que hoje são empíricos a ponto de parecerem até triviais de tão básicos. Mesmo eu, que sempre fui péssimo em matemática, inevitavelmente acabei viajando em cima dessa reflexão.

Como raramente consigo respirar por mais de vinte segundos sem dar cria a alguma analogia infame com nerdices, comecei a pensar em Zelda. Mais precisamente em The Legend of Zelda: Ocarina of Time, que é há mais de 20 anos o meu jogo favorito. Pensei em como é cada vez mais comum se deparar com alguém que diz, às vezes ostentando um suposto senso crítico mais aguçado, que “Ocarina é bom, mas não é tudo isso”. Talvez seja um reflexo do cinismo desapegado que parece tão em voga nos dias de hoje, onde é mais cool agir como se tudo ao nosso redor fosse sempre enfadonho de tão evidente, especialmente na internet. Difícil afirmar com certeza, mas seria o meu palpite.

O fato é que vivíamos outros tempos em 1998. Ser passional em relação a algo que você admira muito não era crime inafiançável, e a grande tendência do momento era outra: hipérboles. Basta dizer que o bug do milênio transformaria o mundo moderno em barbárie, isso se sobrevivêssemos à chegada do ano 2000, e que em algum momento alguém realmente acreditou que os Hanson eram os novos Bee Gees. Assim, Ocarina of Time não só era visto como “tudo isso”, como também era aclamado como o “jogo do século” e até mesmo o “melhor jogo de todos os tempos” – o que, parando agora pra pensar, acabava dando no mesmo. Passional? Sim. Infundado? Jamais. Mas voltemos a esse ponto mais adiante.

Há outra coisa que posso dizer sobre o ano de 1998: foi uma bosta completa pra mim. Digamos que nessa época eu não era uma criança (pré-adolescente?) das mais radiantes, e praticamente nada me dava ânimo ou dispersava do estado de depressão profunda. Isso começou a mudar gradativamente quando consegui alugar pela primeira vez a fita do “Zelda 64”, de longe a mais disputada da locadora. O jogo me marcou profundamente por ter conseguido me envolver a ponto de me afastar das coisas que me angustiavam, ainda que eu não saiba explicar racionalmente como ele fazia isso. Além disso, me fez começar a enxergar video games de outra maneira, tanto nessa questão da experiência particular do jogador, quanto nas reflexões sobre o modo como jogos são construídos.

Dificilmente eu me dedicaria a escrever sobre video games hoje em dia se não fosse por isso. Se pensarmos que estudar game design é algo parecido com o aprendizado de um novo idioma, foi com Ocarina of Time que comecei a compreender as primeiras palavras e sentenças. Foi quando passei a pensar no mundo de um jogo não como algo que simplesmente existia ali magicamente para ser explorado, mas como algo que foi milimetricamente construído e calculado por alguém. Nisso a ficha caiu como um pilão do Zangief: se o treco que causou um impacto profundo em mim foi planejado por outra pessoa, de algum modo foi estabelecida uma relação com ela, algo como um sentimento indireto de gratidão. E nisso a relação com jogos eletrônicos (ou qualquer outra forma de arte) se torna muito mais humana.

Provavelmente essa sacada sobre concepção e game design aconteceu porque Ocarina of Time é um jogo muito didático. Por exemplo, quando você resolve um puzzle, o retorno imediato que o jogo te dá é aquele barulhinho característico da série que te diz “muito bem, fera”, seguido de uma breve cutscene que estabelece com closes e movimentos de câmera a relação de causa e efeito entre a ação que você realizou (acender tochas, por exemplo) e o efeito desejado (abrir uma passagem). Isso ainda é visto nos Zeldas mais recentes e hoje em dia pode até soar intrusivo ou expositivo demais, porque, bem, o “zero” já existe e muitas coisas nos parecem óbvias.

Ocarina of Time é didático porque precisava ser. Ele trouxe ao “idioma game design” muita coisa nova no vocabulário, e se sentiu na necessidade de ajudar o público a soletrar direitinho cada uma. Foi lançado em uma época em que se movimentar em um espaço tridimensional ainda não era algo tão intuitivo, pois a adaptação de algumas coisas básicas do 2D para o 3D seguia em transição.

Talvez o problema mais gritante fosse o combate. É difícil explicar qual foi a sensação de encaixe perfeito na primeira vez que usei o famoso Z-target para travar a mira em um inimigo, porque hoje é complicado imaginar como boa parte dos jogos funcionaria sem isso.

Como exemplo, pegue Bloodborne e The Witcher 3, dois dos maiores lançamentos de 2015, e pense em como esses jogos ficariam sem um sistema de mira automática. E considere que eles aplicam o esquema de modo estruturalmente idêntico ao que era em 98, com a única diferença de que hoje o indicador é um pontinho branco e sutil no inimigo escolhido, enquanto na época a Navi virava um sinalizador amarelo mais grosseiro que placa de motel de estrada – porque o jogo queria te ajudar a soletrar, lembra?

E isso pra não falar dos elementos que ele não criou, mas evoluiu horrores, como o botão de ação que se adapta ao contexto, a transição dinâmica entre dia e noite, os minigames de pesca que arruinam analógicos e o conceito da calça collant branca por baixo de um saiote. Quando pensamos no impacto de todos esses elementos sendo apresentados em conjunto na mídia, aquelas hipérboles sobre ser o Jogo do Século™ não parecem mais tão sensacionalistas.

Boa parte dos Zeldas para consoles de mesa que surgiram desde então tentaram ser “o novo Ocarina of Time” e justamente por isso eles não conseguiram. Ocarina of Time não tentava ser algo. Ele simplesmente era. Havia, claro, o retrospecto em relação a A Link to the Past, mas a necessidade de realizar essa transição para o 3D de modo orgânico obrigou o projeto a se tornar muito mais ousado e pioneiro.

Também é uma pena que tenhamos essa espécie de “memória curta” que torna mais difícil reconhecer o valor das inovações quando elas passam a ser parte inerente do cotidiano. É engraçado pensar que o número zero não é algo que sempre existiu, que em algum momento teve que ser inventado e que esse foi um processo muito penoso. É fácil subestimar o valor e importância de algumas coisas quando não conseguimos mais imaginar como era a vida das pessoas sem elas.

The Legend of Zelda: Ocarina of Time é muito especial por ter conseguido estabelecer esse zero não apenas para mim, mas para muitas pessoas que conheço que hoje têm algum trabalho dedicado a vídeo games, seja desenvolvendo ou escrevendo sobre. Houve uma quebra de paradigma que definiu novos padrões, que separou as coisas em antes e depois desse moleque de gorro verde sair soprando sua flautinha em formato de pão mundo afora.

É por isso que, assim como aconteceu naquele papo de bar, às vezes tento imaginar como seria hoje a minha vida e os videogames em geral se não existisse Ocarina of Time.

Não consigo.

Texto originalmente publicado em junho de 2015 no site Overloadr

Nintendo Nintendo 64 Ocarina of Time Zelda


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