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Sobre Resident Evil 4 e experiências compartilhadas
Por Marcellus Vinícius Publicado em 2 de abril de 2021
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Essa é uma história real.

Aconteceu com o amigo do meu irmão. E comigo, com meu recém-citado irmão completando o trio. É um relato sobre entretenimento eletrônico convertido em experiência compartilhada, cumplicidade e uma decisão que nos atormenta até os dias de hoje.

O ano era 2005, no mês de janeiro. Ou talvez fevereiro, no máximo. Minha referência pra estipular isso é a data de lançamento de Resident Evil 4 no Gamecube (11 de janeiro), porque o jogo, então lançamento, é figura central da história. Eu tinha acabado de alugá-lo na World Games, simpático estabelecimento nos confins da zona norte de São Paulo.

Pouco depois de eu ter começado a jogar, meu irmão (Marcos) chegou em casa, por volta das sete ou oito da noite, e ficou surpreso com o que viu rodando na TV de tubo da sala. Marcos sentou no sofá a tempo de se situar em tudo que tinha rolado até ali com poucas palavras. Não muito depois descobrimos que Ronaldo (amigo nosso de infância) estava passando pelas redondezas e resolveu fazer uma visita, comer uma pizza. Ou esfihas, possivelmente. Alguns detalhes estão nebulosos, mas não os cruciais.

Não era planejado que nessa nossa reunião de última hora Resident Evil 4 seria a estrela da noite, o centro das atenções. O jogo tomou para si o protagonismo com a autoridade de quem nasceu pra ser grande. Estávamos hipnotizados. O fascínio compartilhado virou naturalmente controle revezado. Alternávamos o comando de Leon S. Kennedy conforme progredíamos, mas em nenhum momento me senti como se não estivesse mais jogando por não estar com um controle na mão. O que para o Ronaldo seria inicialmente uma visita rápida acabou se estendendo madrugada afora. Perdemos a noção do tempo, mergulhamos juntos em contextos e regras fictícias da maneira mais lúdica possível.

Até que aconteceu…

Já na calada da noite, com todo o resto da casa – e provavelmente do bairro – dormindo, Ronaldo deu uma sugestão sombria. “E se tentássemos matar o mercador?”, perguntou ele, esboçando o sorriso traquino de quem adoraria pisar na grama apenas por ser proibido. O mercador de Resident 4, cabe explicar a quem não o conhece, é um aliado que permite ao jogador melhorar armas, comprar e vender itens e aprimorar seu personagem em diferentes aspectos para enfrentar os desafios vindouros em condições mais favoráveis. Daí a maldade incutida na sugestão de assassinato, ainda que disfarçada de subversão casual.

O que a ideia de Ronaldo instigou foi um debate sobre as implicações morais e práticas do ato, para decidirmos em conjunto se deveríamos ou não fazer isso. No ponto em que estávamos do jogo ainda não podíamos atestar com certeza as boas intenções do mercador, dada a sua figura misteriosa, com o rosto encoberto e capuz sobre a cabeça, fora o fácil acesso a armamentos visivelmente contrabandeados. Mas é fato que ele só tinha ajudado até então, sem dar nenhum motivo para qualquer hostilidade. Lembro de ter argumentado que o debate era desnecessário porque provavelmente seria impossível matá-lo, pela importância dele no sistema de jogo. “O jogo não deixaria isso acontecer”, jurei. Acho que isso venceu a resistência do meu irmão e todos nos unimos na curiosidade cruel de Ronaldo. Em consenso do trio, a arma foi apontada para o peito do mercador. O gatilho foi puxado.

O gemido de dor agonizante nos persegue até hoje. Quase um urro contido, rouco, um misto de dor e surpresa. Surpresa, sim, pois ficava claro que ele nos vendia armas sem considerar que sua vida estava em risco. Traímos sua confiança. Ao fim do urro, o homem de meia idade estava caído a nossos pés, sua vida digital ceifada por uma inconsequência infantil. Antes da culpa, veio a negação: cogitamos que se saíssemos da sala e voltássemos, provavelmente ele estaria lá vivo de novo, mas, quando fizemos isso, o mercador não estava mais na sala, vivo ou morto. Apenas vazio.

Talvez soe forçado contando agora, mas realmente sentimos culpa. Não foi apenas a inconveniência de perder benefícios em um jogo, mas culpa de fato. “Putz, o cara tava sendo mó parceiro o tempo todo”, chegou a dizer Ronaldo. A sintonia dos sentimentos que nós três vivenciamos com o jogo foi — se me permite o clichê hiperbólico — mágica. O fascínio, a surpresa, apreensão, a sensação de superação após algum desafio mais exigente, e, inesperadamente, a culpa decorrente de um impulso com consequências maiores do que as cogitadas.

Até que, enfim, veio o alívio indizível quando, progredindo mais no jogo, reencontramos o mercador vivo na próxima área onde ele deveria estar disponível. Aparentemente o ato de matá-lo o eliminou daquela área específica, mas continuou existindo nas demais. De repente ele parecia ali novamente como um mero recurso subordinado às mecânicas de jogo, mas para nós já não era mais isso. Sorrimos espontaneamente ao vê-lo bem, e se pudéssemos certamente o teríamos abraçado pedindo sinceras desculpas. Como ele podia aparecer vivo e sadio se tínhamos acabado de presenciar seus últimos momentos de dor e em seguida o súbito desaparecimento do corpo? Mistério.

Há outros enigmas inquietantes em torno dos eventos daquela noite. Por exemplo, de onde terá vindo a motivação de Ronaldo para o atentado a sangue frio contra a vida do solícito mercador? Sem dúvidas uma demonstração sombria das facetas mais vis da crueldade humana. Perdoável apenas quando notamos que a maldade do ato não foi maior do que o arrependimento e a culpa decorrentes, ou o alívio quando reencontramos nosso ajudante encapuzado.

Mas, na opinião do narrador e cúmplice que vos escreve, mais misterioso é o fato da morte do mercador como possibilidade do jogo não ter sido mero acidente, um bug. Alguém na Capcom, em algum momento, antecipou que partiria dos jogadores o impulso de testar a mortalidade dele. Pensando nos muitos Ronaldos ao redor do globo, foi feita uma animação de morte, gravado o áudio de sua voz incrédula e agonizante, e também foi previsto que ele não retornaria à área onde foi assassinado, provavelmente para assustar os tolos que tentassem tal sandice – visivelmente funcionou. Talvez as pessoas por trás dessa possibilidade sejam figuras mais intrigantes do que o ataque de bobeira do nosso trio de revezamento de controle.

O assassinato arquitetado naquele colchão estendido no chão da sala, naquela noite morna regada a pizza/esfihas e refrigerante não tão gelado, é algo que carregarei comigo para sempre. Das muitas memórias que acumulei com jogos eletrônicos, essa tem um assento de honra na sala VIP da nostalgia, por motivos que uma mera racionalização de tudo dificilmente justificaria. Mas talvez os apegos mais valiosos que guardamos por video games sejam mesmo mais passionais que racionais.

É fascinante que o que começou como uma piada num tom meio “é só um jogo, atira nele aí”, tenha virado uma sensação compartilhada que conseguimos recordar com clareza mais de uma década depois. Resident Evil 4 é um jogo onde um cara vai resgatar a filha do presidente de uma seita religiosa que culmina em fazendeiros insanos com tentáculos deformados tomando o lugar de suas cabeças. Clichê pastelão, diriam alguns. Mas é aí que está nosso equívoco ao analisarmos jogos como “meios de contar histórias”, pois a sinopse de contracapa não dá conta de mensurar as muitas histórias que podem surgir na nossa experiência quando interagimos com ele. Essas experiências tendem a ser cada vez mais marcantes quanto melhor for o jogo, e estamos falando aqui de um dos melhores.

Naquela noite, gravações de câmeras ocultas mostrariam que Ronaldo, Marcos e eu estávamos apenas apertando botões num estranho controle roxo de circuito e plástico para disparar eventos num software exibido na tela da televisão.

Nosso álibi. Mas nós três sabemos bem que não foi isso que aconteceu.

Texto originalmente publicado em junho de 2016 no projeto fenia do NOT_VIDEO

Capcom Gamecube Resident Evil


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